Este artigo é resultado de uma trajetória de 15 anos pesquisando inovações sociais de periferia no Brasil e da necessidade de criar um vocabulário que as descreva em toda sua potência: como soluções criadas nas brechas do sistema e que abrem caminhos para outros futuros possíveis, mais sustentáveis e menos desiguais. A partir do diálogo entre os conceitos de "virador" (Souza Neto 2003) e pedagogia das encruzilhadas (Rufino 2019), as inovações sociais aqui são descritas sob a ótica da Inovação de encruzilhada (Afonso e Sarayed-Din 2021). É sob essa ótica que exploramos 3 casos de inovação social que a partir de um empreendedorismo ''a brasileira', inovam e encontram alternativas para a redução de vulnerabilidades sociais e consequentemente, um desenvolvimento local mais sustentável.
Segundo o IBGE (2020), 51 milhões de brasileiros vivem na pobreza, o que corresponde a 24,7 % da população brasileira com renda familiar equivalente a US$ 5,5 por dia. A cidade do Rio de Janeiro, a segunda maior do país em atividades econômicas, tem entre 3 e 8 % de sua população vivendo abaixo da linha da pobreza (U$ 1,90/dia). O Rio de Janeiro possui o maior contingente populacional vivendo em favelas (IBGE 2010). São 1,393,314 pessoas e 763 favelas 2010 (último censo). De todos os 6,323,037 habitantes do Rio, 22,03 % vivem em favelas e periferias, o maior número do país.
Alcançar a segurança econômica é fundamental para essa população e para o país. O Brasil tem centenas de pequenas experiências que são inspirações para futuro sustentável, com a solução de problemas e processos que mudam o padrão relacional e constituem caminhos para uma melhor qualidade de vida. Soluções e processos que a população local -que vivencia esses problemas- tem condição de identificar formas de resolvê-los. Como mostraremos adiante, a inovação social desenvolvida a partir do empreendedorismo à brasileira revela o poder e a criatividade das favelas e periferias brasileiras, o que já é reconhecido em inúmeros trabalhos acadêmicos, artigos de revistas e jornais e por organizações não governamentais. Geralmente essas atividades funcionam sem apoio institucional. Não há romantismo em reconhecê-los como modelos alternativos de desenvolvimento local sustentável, desde que entendamos tais experiências/casos como motores para uma mudança social. Mas, por outro lado, há pouco reconhecimento governamental.
Este artigo aborda a inovação social de "encruzilhada" do Brasil, que são "invenções paridas nas fronteiras e nas brechas que sobraram" para as populações vulnerabilizadas (Rufino 2019, 1). Ela é desenvolvida por pessoas localizadas na base da pirâmide socioeconómica e acontecem nos interstícios do sistema institucional, onde os empreendedores são "pessoas comuns", movidas pela vontade de sobreviver/resolver desafios cotidianos. Tais experiências estão encontrando novas agências e arranjos institucionais como forma de viabilizar tanto suas iniciativas quanto o impacto social almejado. Ao invés de ancoradas por leis, normas e ações de mercado, essas novas formas de fazer, enquadrar, organizar e conhecer baseiam-se em outro tipo de vínculo de credibilidade: novas relações sociais (Haxeltine et al. 2016). Em outras palavras, tais inovações de base tem como alicerce diferentes estratégias como redes sociais (capital social), tecnologias de baixo custo etc.
As autoras deste capítulo são professoras-pesquisadoras associadas a um laboratório na Pós-Graduação em Engenharia de Produção da (maior do país) Universidade Federal do Rio de Janeiro, e estudam inovações de base e periféricas há mais de quinze anos, observando, mapeando e pesquisando em relação com este tipo de iniciativa. Trabalham também com projetos de extensão e pesquisa, que se relacionam diretamente com esta parte da população.1
Como exemplos para reflexão, este artigo explora os seguintes casos: a Barkus, o G10 e o Olabi. Espalhando-se por todos os lugares em meio a espaços urbanos marcados por todos os tipos de vulnerabilidades, os exemplos de inovações sociais brasileiros revelam soluções de aprendizado relevantes para governos comprometidos com sustentabilidades justas (Agieman 2005).
Este artigo está organizado em 4 partes. Após esta breve introdução, a seção 2 apresenta as características e discute os conceitos ligados a uma tipologia de empreendedor e empreendedorismo social. Ainda na seção 2 discutimos o conceito de inovação social e sua adaptação no contexto das favelas e periferias locais, o que chamamos de inovação social de encruzilhada. Na seção 3 apresentamos as 3 experiências que ilustram as discussões conceituais que trazemos. Ao final, identificamos lições aprendidas sobre tais inovações para o desenvolvimento local sustentável e melhoria da qualidade de vida dessa população e a conclusão.
Marco teórico: O empreendedor à brasileira e a inovação social de encruzilhada
Aqui tecemos uma tipologia do empreendedor brasileiro e sua relação com a inovação social nestes territórios, afirmando de maneira transversal e como abordado por Sousa Santos (2007; 2019), que há uma ecologia de saberes a ser valorizada numa perspectiva epistemológica do sul, sem a qual, continuaremos tentando, quando tentamos, sem êxito, reverter a situação. Reconhecendo que os territórios têm seu conhecimento e sabedoria, produzidos de dentro de determinada realidade e que é necessário compreender, aceitar e valorizar estes saberes para que se possa nele intervir com êxito. Os marcados pela exclusão no Brasil vivem nas brechas, nos interstícios, sem a presença do estado e, por isso, têm a sua própria forma de criar dentro dos espaços possíveis - que não são muitos.
Para tal, parece-nos apropriado algo que vá ao encontro da Pedagogia da Encruzilhada, proposta por Rufino (2019), segundo a qual a ênfase da educação deve abordar e ter como objetivos a autonomia, a liberdade, a ternura e a utopia, ao contrário da educação colonialista-reguladora na qual vivemos, que nos forma como sociedade e que trabalha pela redução das experiências sociais e não a seu favor. Para o autor, a tal pedagogia:
são saberes de ginga, de fresta, de síncope, são mandingas incorporadas e imantadas nos suportes corporais, manifestações do ser/saber inapreensíveis pela lógica totalitária. A pedagogia das encruzas é parida no entre, no viés, se encanta no fundamento da casca da lima, é um efeito de cruzo que provoca deslocamentos e possibilidades, respondendo eticamente àqueles que historicamente ocupam as margens, e arrebatando aqueles que insistem em sentir o mundo por um único tom. (Rufino 2019, 273)
O empreendedorismo à brasileira e a inovação social ali nascida, são transgressores por essência, assim como a sobrevivência nesses territórios.
Em artigo publicado no Atlas of Social Innovation, Cipolla and Afonso (2018) afirmam que algumas inovações sociais no Rio de Janeiro usam tecnologias de baixo custo (a grande maioria é gratuita) e que isso cria novos padrões de comunicação entre as favelas e outras partes da cidade. As autoras apresentam em seu artigo uma análise de 10 inovações sociais nas favelas e periferias em uma matriz cujos dois eixos são o suporte formal e a criatividade relacional, ou seja, as soluções apresentadas por essas iniciativas são únicas, quase sempre para resolver problemas de estrutura, cuja responsabilidade pela solução é atribuída (constitucionalmente) ao governo. Afirmam ainda que a maior parte das inovações sociais das favelas cariocas são formas de superar a falta de acesso aos direitos fundamentais e à bens e serviços.
Em outro trabalho, Cipolla et al. (2017), mostram como políticas públicas topdown (hoje já extintas) implantadas na cidade em 2014, fizeram emergir ações inovadoras com menor ou maior grau de aproveitamento das oportunidades oriundas destas políticas. As políticas eram duas: a política de segurança pública para favelas, denominada Unidade de Polícia Pacificadora -UPP- e a política de acesso à internet gratuita. Pela implantação destas políticas garantindo acesso destes territórios ao direito à segurança e à internet, várias inovações de grupos de jovens promoveram sociabilidade, acesso a recursos financeiros e renda. O que afirmamos aqui é a necessidade de olhar o outro como exercício ético e responder por meio de ações, ações políticas, políticas públicas, reconhecimento e valorização da diversidade e da bagagem de saberes que esta população já tem. "Uma educação que busca a emancipação deve estar comprometida com o outro. Assim, ela parte do reconhecimento da diversidade e da busca contínua pelo diálogo entre as diferenças. É uma educação pluralista e dialógica" (Rufino 2019, 284).
Os inovadores a que nos referimos não são os tradicionalmente conhecidos e aceitos, mas os inovadores das bordas, os marginais, os periféricos, os inovadores sociais da encruzilhada. Com base nestes conceitos compreendemos os empreendedores sociais de favela e periferias do Brasil, como um inovador social da encruzilhada.
Empreendedor social à brasileira: o virador
Souza Neto (2003) sugere a expressão virador como um metamodelo do empreendedor brasileiro. Na língua portuguesa, a expressão é uma gíria, utilizada para definir alguém que aproveita oportunidades, independentemente de instrução formal, e soluciona, uma espécie de artesão da vida, "se vira", ou seja, dá conta do que precisa para fazer o que deve ser feito. Em outras palavras (Souza Neto, Bartholo e Delamaro 2005), o empreender dos viradores não pressupõe demandas racionais ou cartesianas. Na literatura hegemônica de negócios o empreender é racional, um aproveitamento de oportunidade que o empreendedor realiza quase que sozinho, reforçando um tipo de sucesso individualista, baseado no modelo norte-americano de self-mademan, nutrindo e reforçando um tipo de sucesso individual. Utiliza-se de uma racionalidade causa-efeito estruturada. O virador não se enquadra nesta perspectiva, o que, para os autores, implicaria o dilema de ou rever o cânone das definições conceituais, ou negar o atributo do empreendedorismo ao virador brasileiro. Para estes autores, isso se deve ao fato de que a maior parte dos estudos sobre empreendedorismo estão focados no que é um empreendedor e não no que ele faz e como faz, concentrando-se em aspectos como liderança e motivação, por exemplo, "não tendo por foco de atenção uma perspectiva eminentemente inter-relacional" (Souza Neto, Bartholo e Delamaro 2005, 25). Eles propõem ainda que estudos sobre a temática contemplem a relação entre empreender e contexto, afirmando que empreender está condicionado a "vínculos situacionalmente determinados" (Souza Neto, Bartholo e Dela-maro 2005, 25), ou seja, precisam considerar a complexa relação de mútuo condicionamento entre situação e empreendimento.
Matéria em um site de notícias brasileiro, de autoria de Martinelli (2018), apresenta, na fala de mulheres das periferias do Rio de Janeiro e São Paulo, a expressão "sevirologia" como um campo de atuação do virador, como uma expressão que estes já usam em referência ao seu cotidiano para produzir renda. Na matéria, uma jornalista "viradora" de periferia afirma:
A diferença da sevirologia para as habilidades valorizadas no mercado de trabalho, como criatividade e adaptação às mudanças, é que não se identifica nem se valoriza no pobre esses mesmos talentos. Não se vê como habilidade a capacidade que temos para potencializar o que tá na nossa mão. Fazemos a coisa acontecer do jeito que dá e como dá [...] estamos o tempo inteiro inventando saídas para a ausência de grana ou do Estado. (Martinelli 2018, 1)
Alinhada com as colocações até aqui, Sarasvathy (2001) e Sarasvathy e Dew (2008) afirmam que os modelos de estudos de administração nos induzem a dialogar com uma lógica causation na qual só é possível empreender por meio de ações pensadas linearmente: visualiza-se um cenário futuro e para ele idealiza-se um plano que determina como, onde e quando chegar. Só depois disso se parte para a ação colocando em prática o planejado. Ao contrário, os autores afirmam que em contextos de escassez de tempo e recursos, os empreendedores constroem estratégias e o próprio futuro, ao longo do caminho, é o que ela chama de pensamento efetivo ou a lógica effectuation. Segundo esta lógica, empreendedores permitem que os objetivos surjam ao longo do tempo, imbricados nas ações e por meio das relações que estabelecem a partir da iniciativa. Na lógica effectuation não se mensura um determinado mercado para atuação, por exemplo, este surge a partir das ideias trazidas e construídas pelas pessoas envolvidas.
Duas pesquisas testaram os estudos de Sarasvathy como lente para analisar negócios de favelas (Pereira 2014; Aleixo 2017) e a lógica effectuation se mostrou bastante adequada aos negócios das favelas da Rocinha e do complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro.
Inovação social de encruzilhada
Observou-se nas últimas duas décadas um maior interesse pelo estudo das inovações sociais, em especial aquelas relacionadas às áreas de gestão, administração pública e empreendedorismo social. No entanto, esta discussão tem sido historicamente polarizada entre uma abordagem focada no agente e outra no contexto/perspectiva estruturalista. A primeira explora o comportamento heroico do indivíduo por trás da inovação social, a segunda foca no contexto externo como fator decisivo para o surgimento de uma inovação social. Propondo um diálogo entre essas duas abordagens, Cajaíba-Santana (2014) apresenta uma nova estrutura conceitual para entender a inovação social como um promotor de mudança. Ao invés de defini-la a partir de seus resultados -problema social a ser resolvido- Cajaíba-Santana (2014, 44. Tradução nossa) defende que "as inovações sociais se manifestam em mudanças de atitudes, comportamentos ou percepções, resultando em novas práticas sociais".
No Brasil, percebemos dois tipos de inovações sociais. O primeiro se encaixa facilmente na descrição de Cajaíba-Santana e são ações que visam reconfigurar como os objetivos sociais são alcançados -que entendemos como sendo inovações sociais tradicionais. Embora ainda enfrente desafios para existir e prosperar, esse primeiro grupo de inovações geralmente encontra mais apoio institucional tanto de serviços e políticas públicas quanto de agências de fomento. Este é o caso de inovações sociais como o Impact Hub (escritório compartilhado existente em vários países cujas empresas que o ocupam estão orientadas para resultados socioambientais), financiado pela BMW Foundation, British Council e Fundação Boticário. O segundo grupo, por sua vez, são aquelas que acontecem apesar de todos os desafios, lutas, constrangimentos e falta de apoio, ao menos em sua fase inicial. Tais inovações representam o esforço dos empreendedores sociais de encruzilhada em encontrar caminhos entre as estruturas institucionais para impulsionar a mudança social, "invenções paridas nas fronteiras e nas brechas deixadas" para a população vulnerabilizada (Rufino 2019, 1).
Sobre este segundo grupo, especificamente no Rio de Janeiro, uma revisão bibliográfica dos trabalhos desenvolvidos por autores do Laboratório de Tecnologia, Diálogos e Sítios2 (Afonso et al. 2015) indicou certas características comuns dessas inovações, que foram exploradas posteriormente por Cipolla et al. (2017). Tal revisão identificou nos trabalhos de Joly (2015); Cipolla e Bartholo (2014); Pereira (2014); Baker Botelho et al. (2014); Egrejas, Bursztyn e Bartholo (2013); Bartholo, Cipolla e Bursztyn (2009); as características da inovação social no contexto brasileiro como sendo as seguintes:
a) estabelecem novos padrões relacionais.
b) apresentam caminhos para a solução de problemas da vida cotidiana.
c) são referências de novos estilos de vida e modos de vida mais sustentáveis.
d) podem ser ou não baseadas em novas tecnologias.
e) emergem de iniciativas de base comunitária.
f) são instáveis e se espalham por contágio e não por imposição.
g) podem nascer e morrer sem nunca se institucionalizarem.
h) estabelecem novos modelos de funcionamento baseados em atores e suas inter-relações como recursos sociais.
Inovações sociais de encruzilhada no Brasil
No Rio de Janeiro há centenas de casos de inovação social de encruzilhada, criadas e geridas por viradores. Estes casos nascem do enfrentamento das poucas condições de sobrevivência digna e de desenvolvimento de alternativas. Em outras palavras, nascem da vontade e relação de e entre pessoas comuns, das comunidades vulneráveis, comumente sem acesso aos direitos básicos. Aqui mostraremos apenas 3 deles como forma de ilustrar o que estamos afirmando: empreendedores sociais são viradores de inovações sociais de encruzilhada; ou seja, trabalham nas brechas do sistema, sem ou com pouco suporte e apoio, ao menos no início de suas invenções, que podem ganhar apoio ao longo do tempo. Muitas vezes, quando ganham apoio, este vem da mesma camada da população que é beneficiada pela ação. Quando muito, o apoio vem de organizações não governamentais, internacionais, da mídia e de pessoas comuns. No Brasil, com o desenvolvimento dos estudos e ferramentas relacionadas aos negócios sociais (Barki, Comini e Torres 2019) muitos empreendedores de encruzilhada passaram a compreender que suas iniciativas são negócios sociais pelas brechas do sistema. Percebem que, na maioria das vezes, não é possível gerar receita a partir do público que atendem. Com isso, buscam mecanismos de monetização (SENSE-LAB 2019), extremamente inovadores que justifiquem o desenvolvimento local do território e a melhoria da qualidade de vida desta população.
A Barkus3 é um negócio de impacto social pautado em Tecnologia Educacional (EdTech) que democratiza o acesso à educação financeira para jovens e adultos, em particular, jovens de grupos vulneráveis. Foi fundada em 2016 por 3 jovens em seus vinte e poucos anos, dentre eles uma mulher negra, que observaram em sua própria trajetória a ampliação de horizontes e escolhas que a educação financeira pode oferecer. Iniciaram com cursos de educação financeira em escolas e rapidamente passaram a oferta à empresas e apesar de hoje terem as empresas como principais financiadoras, sua vertente filantrópica se mantém. Conforme uma de suas fundadoras -Bia Santos- enfatiza:
mais de 12 milhões de jovens entre 18 e 29 anos estão inadimplentes [...] e é por isso que dedicamos parte da receita de projetos em empresas privadas para a realização de oficinas e cursos gratuitos em instituições públicas, levando os mesmos temas com a mesma qualidade para quem não pode pagar por isso.4
Para além de cursos e plataformas, a Barkus criou Iara, um robô de internet (bot) que funciona via WhatsApp. O participante começa um curso de educação financeira personalizado a partir do diálogo com Iara, em linguagem acessível, direcionando as informações financeiras de acordo com o demandado nas mensagens. Ao final, o participante recebe um certificado e vislumbra a possibilidade de melhorar sua relação com o dinheiro e consequentemente aumentar sua qualidade de vida. Utilização de linguagem de fácil compreensão, a ferramenta tecnológica gratuita e acessível (96 % dos jovens possuem WhatsApp no celular e os pacotes de dados mais simples oferecem esta ferramenta ilimitada-Mobiletime/Opinion Box 2021), o desenvolvimento da Iara foi pensado para ampliar acesso e reduzir desigualdades. Em 6 anos mais de 45 000 pessoas passaram pelas inciativas da Barkus, tendo acesso à informação financeira para ampliação de horizontes e possibilitando uma maior liberdade de escolha e financeira.
O G10 Favelas5 foi fundado em 2019 e é uma rede de lideranças sociais das 10 favelas com maior poder econômico do Brasil (numa clara alusão ao G7 e ao G10 dos bancos), cujo objetivo é "tornar as comunidades grandes polos de negócios, atrativo para investimentos, de forma a transformar a exclusão em Startups e Empreendimentos de Impacto Social" (G10 2021). Para os organizadores da iniciativa, o objetivo "não é arrecadar doações ou patrocínio, mas investimentos que gerem tanto retorno ao investidor quanto o desenvolvimento econômico das comunidades". O grupo emergiu com grande visibilidade apenas poucos meses antes da Pandemia de COVID-19 e, na sequência, como uma tentativa (bem-sucedida) de acessar meios para frear a contaminação nas favelas do Brasil. A expectativa da pandemia para as favelas era negativa, uma vez que desemprego, fome, falta de recursos para compra de comida e produtos de higiene, falta de água, somados à necessidade de romper o isolamento social em busca de trabalho, dinheiro ou comida eram uma mistura explosiva para a crise sanitária. O grupo produziu 12 ações de contenção da COVID-19 nas favelas brasileiras, dentre elas, instituição de eleição para presidente de rua; produção e distribuição de refeições (500 mil), cestas básicas (450 mil) e kits de higiene pessoal (500 mil); produção cooperativa de máscaras por costureiras locais (1,5 milhão), fortalecimento do comércio local (10 mil cartões de crédito para compra no comércio local); tele atendimento; apoio a imigrantes e refugiados; atuação jurídica, entre outros. Quanto a resultados, a articulação entre as favelas -que durante a pandemia se pautou nas redes sociais/tecnologias gratuitas- teve enorme impacto positivo, ganhou evidência na mídia, nas cidades e no país. Numa estratégia de crescer nas brechas, utilizaram-se de sua visibilidade e redes sociais para angariar grandes empresas como apoiadoras das ações. Fundaram também um banco de empréstimos a juros baixos para empreendedores de favelas, o G10 Bank, cuja primeira startup a receber aporte financeiro foi o Favela Brasil Express. Esta iniciativa surgiu durante a pandemia, utilizando da rede de presidentes de rua criada para o enfrentamento da COVID-19, para auxiliar na distribuição e recebimento de encomendas que muitas vezes não eram entregues na favela por conta da ausência de endereço formal e segurança.
O Olabfi6 é uma Organização que atua na democratização das tecnologias como forma de transformação social. Criado em 2014, é um espaço dedicado à aprendizagem de tecnologia desenvolvendo ações que estimulam na população o pensamento crítico, a criatividade, a aprendizagem ativa e a capacidade de solucionar problemas. Sua missão é construir um futuro em que caibam todos, acreditando na potência inovadora das periferias. Defende que boas ideias surgem de cidadãos comuns, empenhados em construir novos mundos. A organização é berço de várias inciativas inovadoras que tem como fio condutor a criatividade em solucionar problemas, diversidade, tecnologia e colaboração. Dentre estas inciativas destaca-se o PretaLab, que é fruto de um levantamento de dados realizado em 2017 sobre a situação alarmante da mulher negra no mercado de trabalho de tecnologia e inovação no Brasil. Desde então o Olabi mantém a PretaLab como instrumento de provocação e discussão das questões de gênero e raça na tecnologia, uma forma de criação de uma sociedade mais justa. Esta discussão ocorre das mais variadas formas, baseada em dados e histórias coletadas, encontros organizados para mostrar a 'meninas e mulheres negras do país que tecnologia é sim um campo para elas.'7 Outra inciativa gestada no Olabi é o podcast #PretaPod(e), que utiliza plataformas gratuitas de streaming para ampliar as vozes de mulheres negras e suas potências. Em paralelo, desenvolvem mecanismos de moneti-zação como a venda do serviço de consultoria para grandes organizações que querem contratar mulheres negras para seus departamentos de TI.
Lições aprendidas
Para desenvolvimento sustentável destes territórios, faz-se necessário balanceamento entre presença do estado (ausente, em muitas localidades onde não há acesso pleno à educação ou à saúde, as habitações são rudimentares e a falta de oportunidades é enorme) e o estímulo ao desenvolvimento local de atividades que gerem melhoria das condições de vida, com paralelo acesso a conhecimentos e aumento de redes de capital social. Inúmeras ações socialmente inovadoras nascem nestes territórios do Rio de Janeiro (e do país) buscando solucionar problemas do dia-a-dia que em outras partes da cidade são solucionados pelo estado ou pelo mercado. Estas iniciativas são uma possibilidade concreta de geração de renda, segurança econômica e cidadania, necessitando, entretanto, de estrutura, agenciamento e estímulo a seu desenvolvimento.
Inspiradas pelo tempero brasileiro adicionado à discussão sobre empreendedorismo e inovação sociais e olhando para os 3 casos, identificamos 7 lições relacionadas com as inovações sociais de encruzilhada do Brasil: 1. o inovador social de encruzilhada é um virador; 2. a criatividade relacional é nascedouro para as inovações e resultado de suas atividades; 3. a produção e consumo da inovação social é de base comunitária, mas seus mecanismos de monetização inovadores procuram instituições estabelecidas (depois das fases iniciais de construção); 4. a tecnologia utilizada, é de baixo custo ou gratuita; 5. nascem sem planejamentos estruturados e crescem nas oportunidades do momento, nas brechas; 6. nascem de uma transgressão/contestação da condição de vida à qual estes criadores estão submetidos; e, 7. é típica de inovações nascidas nas periferias e favelas.
Apesar da falta de recursos e apoio, o inovador social da encruzilhada encontra formas próprias de resolver os desafios do dia-a-dia, buscando brechas no sistema vigente. Ele é um "virador" (Souza Neto 2003). O caso do G10 revela como um grupo de moradores de favela buscou suas próprias formas de enfrentar os desafios da COVID-19. Atuando entre as diversas lacunas dos serviços públicos e fazendo uso de seus próprios e escassos recursos, os moradores utilizaram da capacidade de 'se virar' e também de seus laços sociais para o desenvolvimento de inovações sociais da encruzilhada. Uma vez estabelecidos, utilizaram-se de suas relações para chegarem nas grandes empresas que doaram grande parte do material distribuído. O Olabi, mais especificamente o PretaLab, também é um exemplo interessante de lideranças que "se viram", atuando nas brechas do sistema do mercado de trabalho. Transgredindo e contestando o pouco espaço que as mulheres negras possuem no mercado de tecnologia, o PretaLab cria espaço de capacitação, colaboração e de acesso dessas mulheres por meio de banco de talentos negros e consultoria para empresas em como ampliar a diversidade em seus processos seletivos e quadros de empregados.
Além disso, todos os três casos exemplificam a importância da criatividade relacional (Cipolla e Afonso 2018) como forma de assegurar a segurança social, os recursos básicos e os consumidores da solução, uma vez que o mesmo grupo que desenvolve a inovação é aquele que precisa dessa invenção, mas nem sempre o que pode pagar por ela. A ajuda mútua e colaboração é o que move o espaço de criação, empreendedorismo e tecnologia do Olabi e também das soluções dadas pelo G10 para o combate à COVID-19 nas favelas, fruto de relacionamentos e encontros interpessoais. A tecnologia da Barkus, por sua vez, é interativa e inteligente, sendo capaz de responder e auxiliar nas escolhas e aprendizados financeiros a partir da relação com os jovens e adultos vulnerabilizados que a utilizam.
Embora em diferentes escalas e complexidades, o uso da tecnologia, especificamente a gratuita, é uma realidade nos 3 casos. A Iara, da Barkus é a solução mais baseada em tecnologia, pois utiliza de uma solução aplicada a mídias sociais (WhatsApp) de amplo e fácil acesso da população para atingir seu objetivo. Tanto para o Olabi quanto para o G10, as redes sociais e as plataformas de videochamadas (zoom e google meeting) tiveram um papel importante na mobilização social, com o distanciamento social exigido pela pandemia, aumentando a pressão pelo uso dessas tecnologias como meio de comunicação, comercialização, criação de produtos e serviços e obtenção de doações. Especificamente no Olabi, muitas das soluções tecnológicas gestadas no espaço do laboratório de inovações utilizam-se de tecnologias e redes sociais, tais como plataformas gratuitas de streaming de podcast (#Preta-Pod(e)), etc. Particularmente nas estratégias de comunicação e divulgação, essas inovações sociais divulgam suas soluções e o público utiliza e apoia suas iniciativas por meio do contágio. Tanto no caso do G10 quanto no do Olabi, foi o boca a boca e a rede social que atraíram as mesmas pessoas das favelas e periferias para aderir às inovações.
Desta forma conclui-se que as inovações sociais de encruzilhada nascem nas brechas do que resta para as populações vulneráveis, em um modo de transgressão/contestação das instituições estabelecidas e são desenvolvidas por um tipo específico de empreendedor social: o virador. Esse empreendedor social 'a brasileira cria novos padrões de relação (Hexeltine et al. 2016), percebidos através de suas novas formas de fazer, conhecer, enquadrar e organizar (Haxeltine et.al. 2016). Também foi possível confirmar que tais inovações sociais estão de acordo com as características elencadas por Afonso et al. (2015). Sendo assim, defendemos que as inovações sociais de encruzilhada do Brasil são motores para mudança social, abrindo caminhos para modelos alternativos de futuros com foco no desenvolvimento local sustentável e na melhoria da qualidade de vida das populações vulneráveis. Também são fonte de inspiração para a sociedade civil, ONGs, setor privado, e para políticas públicas no Brasil e em outras comunidades do Sul Global que estejam comprometidas/interessadas com novas ideias que ajudem na melhoria da qualidade de vida dos territórios.