Artículo de investigación
DOI: https://doi.org/10.32719/25506641.2022.11.1

Estudios de la Gestión: revista internacional de administración, No. 11
(Enero-Junio de 2022), 17-44. ISSN: 2550-6641; e-ISSN: 2661-6531


Tem ancestralidade o conceito de gestão social?


¿Tiene ancestralidad el concepto de gestión social?


Does the Social Management Concept have Ancestrality?


Recibido: 14 de enero de 2021 • Revisado: 12 de marzo de 2021
Aceptado: 20 de junio de 2021 • Publicado: 1 de enero de 2022






Fernando G. Tenório ORCID

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Brasil fernandoguilhermet@gmail.com.


Fernando López Parra ORCID

Instituto de Altos Estudios Nacionales. Quito, Ecuador ferlopezparra@gmail.com.


Guilherme M. Tenório ORCID

Fundação Getúlio Vargas - Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea. Rio de Janeiro, Brasil gtenorio6@gmail.com.


Resumo

No presente artigo, sem pretensões historiográficas, relatamos experiências pontuais que ocorreram em distintos territórios, centúrias anteriores ao século XX, práticas de gestão coletiva que denominamos pré-capitalistas. O intuito foi verificar se tais práticas se aproximam do conceito de gestão social aqui defendido em nota de rodapé nas considerações iniciais do texto. Serão seis as experiências resumidamente relatadas: Comunidade cristã primitiva, Ayllus, República Guarani, Quilombo dos Palmares, Obshinas e Comuna de Paris. Desse modo, o título do artigo anuncia, com antecipação, a necessidade de que outros estudos o ampliem, inclusive por meio do relato de práticas contemporâneas.

Palavras-chaves: comunidade, pré-capitalismo, ancestralidade, gestión colectiva e gestão social.

JEL: D69 Outros.


Resumen

En este artículo, sin pretensiones historiográficas, se describen experiencias específicas que ocurrieron en diferentes territorios, siglos antes del XX, prácticas de gestión colectiva que se denominaron en este artículo precapitalistas. El objetivo fue verificar si tales prácticas se acercan al concepto de gestión social que aquí se defiende en una nota a pie de página en las consideraciones iniciales del texto. Se relatarán brevemente seis experiencias: Comunidad cristiana primitiva, ayllus, República Guaraní, Quilombo dos Palmares, Obshinas y Comuna de París. Así, el título del artículo anuncia, de antemano, la necesidad de otros estudios para ampliarlo, incluso a través del informe de prácticas contemporáneas.

Palabras clave: comunidad, precapitalismo, ancestralidad, gestión colectiva y gestión social.

JEL: D69 Otros.


Summary

In this article, without historiographical pretensions, we report specific experiences that occurred, in different territories, centuries before the 20th century, collective management practices that we call them pre-capitalist. The aim was to verify if such practices are close to the concept of social management defended here in a footnote in the initial considerations of the text. There will be six experiences briefly reported: Primitive Christian Community, Ayllus, Guarani Republic, Quilombo dos Palmares, Canudos, Obshinas and Paris Commune. Thus, the title of the article announces, in advance, the need for other studies to expand it even through the report of contemporary practices.

Keywords: pre-capitalism, ancestry, collective management and social management.

JEL: D69 Other.




Considerações iniciais


Ahistoriografia não é o objeto deste artigo, mas os eventos históricos aqui relatados servirão como referência para ampliar uma discussão que ocorre no Brasil desde o início dos anos 1990: o significado de gestão social, que nas últimas três décadas tem sido objeto de diferentes interpretações quanto a sua possível operacionalização. Há os que aceitam a possibilidade de sua aplicação às organizações do terceiro setor, outros o relacionam à implementação de políticas públicas sociais, e há aqueles, como é o caso dos autores deste artigo, que não diferenciam a sua possibilidade de aplicação, pois acreditam no potencial transversal de sua execução nos três setores: primeiro, segundo e terceiro, em que pese a ordem socioeconômica na qual vivemos, o capitalismo. Desse modo, este texto tem como objetivo central identificar no passado, anterior ao século XX, experiências pré-capitalistas que exercitaram aproximações gerenciais com o conceito de gestão social.

A gestão social é a tentativa de “substituir a gestão tecnoburocrática, monológica, por um gerenciamento participativo, dialógico, no qual o processo decisório é exercido por diferentes sujeitos sociais. Em seu processo de afirmação, a verdade só existe se todos os participantes da ação admitem sua validade, isto é, a verdade é a promessa de consenso racional, não é uma relação entre o indivíduo e sua percepção de mundo, mas sim um acordo alcançado por meio da crítica intersubjetiva”. Antitético ao conceito de gestão social é o conceito de gestão estratégica: “um tipo de ação social utilitarista, fundada no cálculo de meios e fins e implementada mediante a interação de duas ou mais pessoas, na qual uma delas tem autoridade formal sobre a(s) outra(s). Por extensão, esse tipo de ação gerencial seria aquele no qual as organizações empresariais privadas determinariam suas condições de funcionamento e o Estado se imporia à sociedade por meio de processos eminentemente fundados na técnica, configurando intervenções de caráter tecnocrático. (Di Giovanni e Nogueira 2015, 412)

Para tanto, apontaremos experiências ocorridas na América Latina e no continente europeu, sem, contudo, esgotar as exemplificações, uma vez que essas experiências poderão ser encontradas na história de outros continentes.

Os modelos de organização comunitária ou coletiva que receberam a atenção de estudiosos estão localizados em diferentes cenários que podem ser agrupados em quatro categorias: a) Europa-Central em processo de industrialização: Inglaterra, França, Alemanha, Suíça etc.; b) Europa-Periférica predominantemente agrária: Rússia, Espanha, Países Bálticos etc.; c) Colônias ou ex-colônias com complexas sociedades rurais: Índia, Java, México, Peru, Argélia etc.; e d) Colônias com populações organizadas em bandos ou tribos (“sociedades primitivas”) (Romero 1990, 13). Outro texto de amplitude semelhante ao de Carlos Giménez Romero, La polémica europea sobre la comunidad aldeana (1850- 1900), é o livro de Kenneth Rexroth Comunalismo: das origens ao século XX, disponível em: www.ebooksbrasil.org. Acesso em: 25 ago. 2019. “É importante observar que, em A origem da família, Engels não se refere só ao passado pré-histórico. Assim como Morgan, ele constata que, mesmo em sua época, existiam ainda comunidades indígenas com este tipo de organização social igualitária. Ele vai se entusiasmar, por exemplo, pela Confederação dos Iroqueses, uma aliança de nações indígenas da América do Norte: o comunismo primitivo está presente também no século XIX. (Löwy 2020)

Não queremos ser nostálgicos com os exemplos, mas é uma maneira de pensar de modo historicizado, sem o qual “não temos como pensar a possibilidade de mudança, nem viver o presente como algo contingente e sem desfecho conhecido” (Ross 2019, 125). Por sua vez, essa perspectiva de recuperar experiências do passado pré-capitalista para ilustrar o presente avizinha-se da leitura sociopolítica do romantismo, que, segundo Michael Löwy: “[sem] querer decidir o debate, e a título de hipótese de trabalho, parece-nos que um dos traços mais fundamentais do romantismo, enquanto corrente sociopolítica (aliás, inseparável de suas manifestações culturais e literárias), é i a nostalgia das sociedades pré-capitalistas e uma crítica ético-social ou cultural ao capitalismo” (Löwy 2008, 12) (itálico do autor). Acrescente-se a isso, ainda na perspectiva lowyniana, que

[n]a visão romântica do mundo, esse passado pré-capitalista se encontra ornado de uma série de virtudes (reais, parcialmente reais ou imaginárias) como, por exemplo, a predominância de valores qualitativos (valores de uso ou valores éticos, estéticos e religiosos), a comunidade orgânica entre os indivíduos ou, ainda, o papel essencial das ligações afetivas e dos sentimentos – em contraposição à civilização capitalista moderna, fundada na quantidade, no preço, no dinheiro, na mercadoria, no cálculo racional e no frio lucro, na automatização egoísta dos indivíduos. (Löwy 2008, 13)1

Dessa maneira, serão os seguintes relatos pré-capitalistas, sob a forma de resenhas, que descreveremos neste texto por ordem de apresentação: Comunidade primitiva cristã, Ayllus, República Guarani, Quilombo dos Palmares, Obshchinas e Comuna de Paris. No entanto, devemos considerar que esses pequenos relatos não esgotam todas as experiências que ao longo da história, de uma maneira ou de outra, de forma consciente ou não, grupos sociais utilizaram para tentaram resolver, de modo coletivo, as suas necessidades de sobrevivência. Reiteramos que os relatos aqui descritos não são historiográficos, muito menos enciclopédicos. O objetivo foi tão somente recuperar e/ou relembrar alguns fatos históricos, mesmo que de modo sincrônico, que poderiam compaginar práticas ancestrais com práticas contemporâneas, com potencial para estimular proposições de processos gerenciais compartilhados, dialógicos, uma vez que o passado tem recursos culturais que podem, ajustados, ser contemporaneamente utilizados.


Resenhas pré-capitalistas


Comunidade cristã primitiva. Neste texto, delimitaremos a nossa interpretação do significado de comunidade primitiva, associando-o ao surgimento do cristianismo, portanto, quando do início da Era Comum (EC). Para tanto, acompanharemos a demarcação histórica descrita por Henrique Mendonça Machado (2012) com o início das comunidades cristãs “entre o ano 30-65 d.C. [o começo] em comunidade dos primeiros cristãos” (Machado 2012, 16). Apesar dessa delimitação, não desconsideramos a possibilidade de que outros tipos de atividades comunitárias de orientação leiga ou de fé religiosa diferente do cristianismo aconteciam no início da EC. Essa delimitação se deve ao formato de artigo do presente texto, que limita o número de páginas a ser desenvolvido, e, o que é mais importante frisar, por não ser um texto historiográfico nem tampouco sobre a eclesiologia da Igreja. Não obstante, “a Igreja cristã primitiva tornou-se norma e fundamento para as Igrejas cristãs, de todos os tempos” (Machado 2012, 16) e “é impossível começar a falar em Igrejas cristãs primitivas sem citar a Igreja de Jerusalém [Palestina], pois foi nela que se originou o cristianismo” (Machado 2012, 18).

Nossa opção por descrever processos decisórios comunitários pré-capitalistas, como o caso das comunidades cristãs primitivas, tem a ver com o que diz Tom Bottomore no verbete comunismo primitivo, no Dicionário do pensamento marxista (1988) por ele organizado, de que há “uma suposição errônea de que todos os povos primitivos eram comunistas” (Bottomore 1988, 74). Desse modo, acompanhamos o mesmo Tom Bottomore quando diz:

Os textos atuais de antropologia observam em geral que, nas sociedades igualitárias, os direitos aos recursos eram comuns; a propriedade limitava-se a objetos estritamente pessoais; o status porventura existente não era herdado, mas correspondia diretamente à sabedoria, à capacidade e à generosidade comprovadas; os dirigentes eram apenas ‘primeiros entre iguais’ num processo de tomada de decisões essencialmente coletivo. (Bottomore 1988, 74)

Partindo dos trabalhos do antropólogo norte-americano Lewis H. Morgan sobre a sociedade gentílica da pré-história, Engels [Friedrich] vai estudar, com grande interesse, e mesmo entusiasmo, esta forma primitiva de sociedade sem classes, sem propriedade privada e sem Estado. Uma passagem de Origem da família ilustra bem essa simpatia:

Que maravilha era a constituição gentílica! Sem soldados, sem gendarmes ou policiais, sem aristocratas, Reis, regentes, juízes, sem prisões (...) todos iguais e livres – inclusive as mulheres. (..) A civilização é uma degradação, uma queda, em relação a simples grandeza moral da antiga sociedade gentílica”. (...) Esta é a análise engelsiana do comunismo primitivo – outro termo para designar o que os antropólogos chamavam de “sociedade gentílica” (de “gens”, comunidade tribal, clânica ou familial). (Löwy 2020)

A comunidade cristã primitiva tem origem no judaísmo, e, no dizer de Hans Küng:

Não são necessários longos desenvolvimentos para compreender que a primeira geração dos que acreditavam no Nazareno, em que viam o Messias, permaneceu totalmente integrada no judaísmo – tal como o próprio Jesus, a sua família e os seus primeiros discípulos, homens e mulheres. (Küng 2012, 83. Itálico do autor)

Desse modo, eram comunidades de orientação judaico-cristã na medida em que as primeiras comunidades de cristãos orientavam as suas prédicas na crença de um Deus único, aderentes à Sagrada Escritura e à Torá, “frequentava( m) o Templo, oferecia(m) os mesmos sacrifícios e utilizava(m) nas suas orações os mesmos salmos e hinos” (Küng 2012, 84).

Objetivando atender ao presente texto que tenta verificar até que ponto práticas societárias pré-capitalistas se aproximam, avizinham-se, do conceito de gestão pretendido – a gestão social, a comunidade primitiva de orientação cristã, sob o paradigma judeu-cristão, poderia ser qualificada de “democrática, no melhor sentido da palavra (...): uma comunidade erigida na liberdade, na igualdade e na fraternidade” (Küng 2012, 91 – itálico do autor). “A comunhão dos bens, a oração, a fração do pão e o ensinamento dos apóstolos caracterizavam a vida da comunidade cristã primitiva” (Machado 2012, 16). Enfatizaremos o que nos aponta Henrique Mendonça Machado por meio dos Atos dos Apóstolos descrito no Novo Testamento:

2.42 E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações [...] 2.44 Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. 2.45 Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade. 2.46 Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam o pão de casa em casa, e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, [...] 4.32 Da multidão dos que creram era um coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das cousas que possuía; tudo, porém, lhes era comum. [...]4.34 Pois nenhum necessitado havia entre eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores correspondentes, 4.35 e depositavam aos pés dos apóstolos; então se distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade. (Bíblia Sagrada 1969, 144-146)2

E um fato que deve ser salientado a partir dessas observações de Hans Küng, tão debatido nos dias de hoje, é a questão de gênero. Naquelas comunidades as mulheres desempenhavam um papel nada inferior, pelo que se possa imaginar. “Tendo em conta o estado atual das pesquisas, já não subsiste a mínima dúvida de que não só no círculo dos discípulos de Jesus, mas na comunidade primitiva como tal, algumas mulheres desempenharam um papel nitidamente importante nessas comunidades” (Küng 2012, 91). Apesar dessa qualificação de que eram democráticas as comunidades primitivas de orientação cristã, e

embora todos os membros da Igreja3 primitiva tenham sido fundamentalmente iguais, beneficiando- se no essencial dos mesmos direitos e submetendo-se às mesmas obrigações, não se tratava de um igualitarismo indiferenciado, de um enfileiramento e de uma homogeneização que teriam nivelado a diversidade dos dons e dos serviços. Pelo contrário, a comunidade primitiva de Jerusalém, que possuía, segundo Lucas, ‘um só coração e uma só alma’, dava lugar a personalidades contrastadas, a posições diversas, a funções diferenciadas. (Küng 2012, 92. Itálico do autor)

Possivelmente, essas funções diferenciadas aproximam-se do que foi acima apontado por Tom Bottomore de que o status porventura existente não era herdado, mas correspondia diretamente à sabedoria, à capacidade e à generosidade comprovadas. Daí, por exemplo, a existência dos apóstolos, que “eram considerados como tais as testemunhas e mensageiros originários, os que, na qualidade de primeiras testemunhas anunciadoras da mensagem de Cristo, fundavam e dirigiam comunidades” (Küng 2012, 93), assim como “os presbíteros [...]constituíam o corpo das autoridades eclesiásticas locais (Machado 2012, 19). Por sua vez, o significado de santo “[s]eria realmente o último termo que se teria pensado em usar, no começo dos tempos cristãos, para designar os serviços na Igreja; estes deviam justamente evitar todo o estilo autoritário e toda a pretensão de poder” (Küng 2012, 93-94). Henrique Mendonça Machado apud Leonardo Boff (Boff 1994, 81) comenta que, “em Jerusalém, desenvolveu-se uma eclesiologia sinagogal, com a autoridade centralizada em um conselho de presbíteros” (Machado 2012, 19).

Contemporaneamente, o ser primitivo é aquela pessoa que não evoluiu, atrasada, alguém que não aperfeiçoou os conhecimentos, relacionando-o aos equus asinus – os asnos. No entanto, aqui a expressão comunidade cristã primitiva tem o significado de uma realidade histórica não imaginária, pois aconteceu naquele momento da história em que o ser humano vivia comunitariamente em relação ao trabalho e dos resultados daí provenientes. Portanto, viver comunitariamente, um ideário social, a despeito da especificidade religiosa cristã, nas suas origens, era viver de modo comunal no qual o agir era em comum e os bens a todos ou a quase todos pertenciam.

2. Ayllus. A primeira de nossas visões românticas pré-capitalistas será exemplificada por meio das práticas das sociedades andinas pré-colonização espanhola por meio dos ayllus e minka’s exercitados pelos povos de origem quéchua e aimarás. Porém, uma observação preliminar se faz necessária: à diferença das outras resenhas a seguir, relataremos o significado de ayllus e minka’s como conceitos abstratos, genéricos, sem particularidades territoriais, pois ambos abrangeriam práticas não só históricas como ainda em uso pelos povos andinos que vivem sobre uma cadeia de montanhas que se estende da Argentina à Venezuela, portanto, compreendendo sete países: Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela. Não querendo dizer que em todos esses países e nos distintos povos que os compõem as expressões ayllus e minka’s sejam comuns, outros vocábulos poderão dar significado àquelas ações sociais de orientação coletiva ou, simplesmente, práticas ancestrais que deixaram de existir substituídas por outras de orientação individualista.

[Estudos] sobre os quechuas e aymaras explicam que estas sociedades tinham como núcleo organizativo o ayllu, que entre outras coisas significa comunidade, linhagem, parentesco com um antepassado comum, real ou suposto. Os ayllus, em sua configuração original, eram unidades sociais segmentadas, cada uma em duas parcialidades, que representavam partes complementares como direita e esquerda ou acima e abaixo. As markas são unidades maiores que contém ayllus. (Ospina 2009, 108)4

De acordo com Alberto Acosta, os ayllus “são bastante mais democráticos que os processos da democracia representativa desenvolvidos a partir da institucionalidade estatal” (Acosta 2015, 171), sob a qual têm vivido alguns povos até a atualidade. Por sua vez, poderemos acentuar o dizer de Alberto Acosta por meio de Carlos Mariátegui, que o antecedeu nesse tipo de análise:

As comunidades repousam sobre a propriedade comum das terras em que vivem e cultivam e conservam, por meio de pactos e laços de consanguinidade que unem entre si as diversas famílias que formam o ayllu. [...]. Cada família possui um pedaço de terra, porém não pode vender porque não lhe pertence: é da comunidade. (Mariátegui 2010, 99)5

A prática da minka’s, também na língua quéchua e aimará, significa atividade reciprocamente realizada cujo beneficiário paga com trabalho igual (Dicionário Quechua-Aymara s. f.). “Porém, não só na existência das comunidades se revela o espírito coletivista do indígena. O costume secular da ‘minka’ subsiste nos territórios do Peru, da Bolívia, do Equador e Chile” (Mariátegui 2010, 99).6 Em 2017, visitando o Equador, presenciamos a prática da minka na província de Imbabura.

Devemos considerar também que nesse período pré-incaico (Tahuantinsuyo) de pré-colonização espanhola havia uma estrutura hierárquica étnica conhecida como curacazgos, cacicazgos ou senhorios étnicos. Entretanto, não significa dizer que este tipo de organização política guarda relação direta com os sistemas de sociedades centralizadas por meio do Estado como comumente nos parece. Na realidade, é um sistema no qual os senhorios étnicos não exercitavam “seu domínio ilimitado sobre os demais” (Ayala Mora 1996, 26), tampouco administravam “um território demarcado com fronteiras fixas” (Ayala Mora 1996, 26). Era uma autoridade de origem hereditária suportada por “um ethos aristocrático, porém, ao mesmo tempo, carece de um aparato formal e legal” (Ayala Mora 1996, 26). Além dos senhores étnicos, pode-se dizer que no período pré-incaico existiam três níveis de autoridade em uma llajta, ou povoado: “o ‘cacique principal’, que residia no núcleo habitacional mais importante, porém não dominava os outros assentamentos menores; os chefes das llajtacuna individuais[...]e, finalmente, as autoridades existentes em cada ayllu, parcialidades ou grupos de parentesco que juntos conformavam uma llajta” (Ayala Mora 1996, 27).

3. República Guarani. É uma das experiências que, ao sul do Brasil e em limites fronteiriços com Argentina e Paraguai, constituiu uma das mais acentuadas formas de gestão coletiva ocorridas no continente desde a chegada dos colonizadores ibéricos. No entanto, falar do povo Guarani como de qualquer comunidade de indivíduos não é apenas descrever a organização do seu modo produtivo, que, no presente texto e no que diz respeitos aos Guaranis, restringe-se a um período da ainda existente história desse povo.7

Apesar de sua permanência ainda que precária, nossa apreciação diz respeito à proposta de uma República autóctone que durou 150 anos (1610-1768) e contou, substantivamente, com a participação da Companhia de Jesus, ordem católica jesuíta que por meio de suas Missões fundou cidades-paróquias (os Povos), transformando o conjunto dessas cidades em um território que procurava combinar a Profecia do Reino de Deus com a Utopia de uma Terra Sem Males, “de cada um de acordo com suas possibilidades para cada um de acordo com as suas necessidades” (Lugon 2010, 10), praticando, de acordo com a língua Guarani, “o Tupãbaê (trabalho para Deus), eminentemente comunitário” (Lugon 2010, 10), em vez do “Abãbaê (trabalho para si)” (Lugon 2010, 10). “Em suma, a República Guarani realizava, em pequena escala, a fórmula do federalismo internacional do futuro: administração autônoma das comunidades, liberdades locais asseguradas na base de um regime político e econômico unificado” (Lugon 2010, 66).

Essa forma unificada de economia comunitária pode ser enfatizada pelo escrito de José Roberto de Oliveira em seu livro Pedido de perdão ao triunfo da humanidade, quando ele diz que a “ordem econômica em vigor nos 30 Povos [das Missões] foi comunal, com a política interna totalmente democrática, citada por muitos escritores para demonstrar que o comunismo é executável quando realizado em modelo muito diferente daquele que o mundo conheceu posteriormente” (Oliveira 2009, 227). Também acrescenta que o sentido de organização cooperativista não teria começado na Europa, mas sim com as Missões, “[c]onforme a pesquisa do estudioso Rafael Carbonell de Masy, é chegada a hora de resgatar a origem da primeira cooperativa, surgida em 1627, na redução Jesuítica de Encarnación de Itapúa” (Oliveira 2009, 228).8

O objetivo das missões jesuítas por meio da Companhia de Jesus, além da propagação do catolicismo, era atender aos interesses coloniais da Espanha e de Portugal.9 Daí que a criação dos pueblos ou reduções, significando reunir em determinado território os diferentes e dispersos povos do continente, não era novidade para muitas populações nativas, que à sua maneira já se organizavam em grandes aldeias. No entanto, o novo modelo estava acompanhado de novos mecanismos de controle e administração social, que eram estranhos ao cotidiano nativo. Fatores externos, que ao serem implantados e disseminados em um novo povoado indígena, alteravam profundamente o modo de ser e de viver das populações que aceitaram a nova condição de vida (Silva 2011).10

Mas as relações entre os guaranis e jesuítas não eram livres de contradições. Não só quanto aos aspectos inerentes à gestão das missões, outras questões próprias a esse relacionamento podem ser objeto de apreciação.11 No entanto, aqui, nossa preocupação apenas observa o tema “gestão das missões” no qual as discrepâncias podem ser percebidas, como exemplifica Lugon:

A análise dos trágicos acontecimentos históricos nos leva a pensar que os missionários, como pais de família absorvidos por preocupações diversas, não descobriram mais cedo que os índios aspiravam uma emancipação mais completa. [...]os simples cidadãos guaranis, durante as assembleias políticas, bem como os conselheiros, nas sessões semanais do cabildo, davam provas de grande maturidade. [...] no entanto, os superiores jesuítas os mantiveram na administração apenas local das comunidades, reservando-se o monopólio da direção-geral das reduções. (Lugon 2010, 186)

Dada a posição de hierarquia entre os jesuítas e os guaranis como acima observado por Clovis Lugon, uma vez que existia o controle da direção-geral das reduções por parte dos missioneiros, não cabe dúvida de que a cordialidade não era o histórico nas relações sociais entre guaranis e jesuítas. Nesse relacionamento não “houve só facilidade, senão reações por parte dos guaranis e com frequência agressivas, e algumas vezes tão violentas que chegaram a ocasionar a morte de vários missioneiros” (Oliveira 2009, 50).

Apesar dessas contradições, na interpretação de Clovis Lugon a “República Guarani [teria desenvolvido] um sistema de comunidade intermediário entre o comunismo primitivo e o comunismo evoluído [...] além do capitalismo” (Lugon 2010, 230). A extinção da experiência foi implementada por tropas espanholas e portuguesas culminando com a assinatura em 27 de março de 1767, por Carlos III, rei da Espanha, da expulsão dos jesuítas da Companhia de Jesus.

Vale reproduzir, a fim de complementar, o artigo de Francisco José da Silveira Lobo Neto, “A ‘República dos Guaranis’ e os sete povos das Missões dos Jesuítas” (2018):

República Guarani sobreviveu, por pouco mais de século e meio, equilibrando sua autonomia entre duas metrópoles monárquicas [Espanha e Portugal]. O segredo desta sobrevivência foi a estratégia jesuíta de criar conselhos eleitos ou “Cabildos”, já mencionados pelo Padre Mastrilli em 1626 e 1627. Lugon (1977, p. 89) nos diz que “toda administração prática se encontrava em suas [dos guaranis] mãos”. Os índios cuidavam da ordem em sua “redução” e tinham a iniciativa de tomar as providências necessárias e úteis ao bem comum. “Organizavam e dirigiam os trabalhos. Administravam os armazéns. Rendiam justiça.” As eleições ocorriam “nos últimos dias de dezembro ou no primeiro dia do ano” (ibidem). Um dos Missionários exercia o cargo de Superior-Geral e visitava as “reduções” e escrevia as diretrizes para manter “la uniformidad en todo, en todas las reduciones. (Regulamento de 1637, n.º 5, apud Lugon, 91)12

A despeito das controvérsias em torno da República Guarani reproduziremos, ainda que de forma extensa, o último parágrafo do livro de José Roberto de Oliveira, Pedido de Perdão ao triunfo da humanidade para fazer jus a um povo, o Guarani, que, desde a chegada dos colonizadores ibéricos no Abya Yala até a atualidade, tem sido objeto de uso, abuso e de perseguição:

Há muitos pedidos de perdão esperando para serem pronunciados. Precisam romper o silêncio os herdeiros daqueles que ajudaram a matar a melhor experiência missional cristã já realizada na humanidade. Perdão pelos 300.000 escravos levados para as lavouras de São Paulo. Perdão pelos outros tantos mortos nas ações bandeirantes. Perdão pelos maquinadores portugueses, espanhóis, ingleses e franceses do triste Tratado de Madri. Perdão pelas ações dos exércitos de Portugal e Espanha. Recheados de colonos espanhóis e portugueses. Perdão por espalharem o povo na imensidão da pampa durante a formação da República do Uruguai. Perdão por todos aqueles que não respeitaram a cultura e o povo Guarani nos dias de ontem e de hoje. (Oliveira 2009, 230)

4. Quilombo dos Palmares. Diferentemente da República Guarani, foi uma experiência praticada por escravos, de maioria africana, fugitivos do escravismo promovido pelos portugueses e holandeses.13 O Quilombo dos Palmares ocorreu durante o setecentismo na região fronteiriça entre os estados de Alagoas e Pernambuco. “Estendia-se das vizinhanças do Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, até a zona norte do curso inferior do [rio] São Francisco, em Alagoas. O nome Palmares provinha da extraordinária abundância da palmeira pindoba (Palmares Attalea Pindoba)” (Carneiro 2011, 19).14

Palmares foi o mais importante quilombo do Brasil. Surgiu na capitania de Pernambuco nas últimas décadas do século XVI, sendo que a primeira referência aparece em 1597. Ali os mocambos cresceriam enormemente, e em meados do século XVII a sua população já alcançava milhares de pessoas distribuídas em vários mocambos ao longo daquelas serras. Estes eram denominados a partir dos nomes de seus chefes e comandantes. Entre os principais estavam os mocambos de Andalaquituche, Aqualtune, Dambraganga, Osenga, Quiloange, Quissama, Subupira e Acotirene. O centro político, e onde morava o rei [Ganga Zumba], era chamado de Mocambo Macaco, e depois foi transferido para o Mocambo Cucaú.15 (Schwarcz e Gomes 2018, 369)

O que chamou atenção para o presente texto foi a capacidade de sobrevivência ao longo de quase um século, fato que permite inferir que o seu sistema organizacional de subsistência, segundo um contexto de escravos fugitivos e da época de sua implementação, favorece ilações quanto a sua capacidade gerencial de sustentabilidade econômica e social. Mesmo que consideremos que o processo decisório era um sistema oligárquico, na medida em que existia um rei, a organização se dava em bases comunitárias, uma vez que os resultados das colheitas alimentavam o conjunto da população. Parece ser que a oligarquia era, por um lado, reprodução das experiências trazidas do continente africano;16 e, por outro, a necessidade de sobreviver às constantes incursões dos colonizadores portugueses e holandeses, fato que obrigava os palmarinos a desenvolver estratégias de defesa por meio de um pequeno grupo de pessoas, os oligarcas, que era “formalizado” por meio da Casa do Conselho, localizada no mocambo de Macaco, espécie de capital do Quilombo, e era composto pelos chefes de cada mocambo e com a decisão final, dependendo da situação, do rei Ganga Zumba.17 De acordo com Flávio Gomes, “o marco histórico para a destruição de Palmares (basicamente o assassinato de seu principal líder, Zumbi) é o ano de 1595” (Gomes 2010, II).

À semelhança da República Guarani, a história de Palmares também tem as suas controvérsias. Silvia Hunold Lara no texto Com fé, lei e rei: um sobado africano em Pernambuco no século XVII18 comenta que “[n]em sempre tal movimento redundou numa avaliação positiva da história do quilombo” (Gomes 2010, 101). A autora chega a dizer que escritores como Nina Rodrigues tinham um sentimento desfavorável ao que ele denominava de “barbárie africana” (Rodriguez 1905 em Gomes 2010, 101) acrescentando “que a destruição de Palmares teria aberto caminho para a ‘civilização do futuro povo brasileiro’ ” (Gomes 2010, 101). No entanto, ainda de acordo com Silvia Hunold Lara, autores como Arthur Ramos têm outra perspectiva da experiência palmarista:

Palmares era um “verdadeiro estado negro no Brasil, em pleno século XVII”, e constituía um “exemplo de organização política e econômica” que podia ser qualificada de “perfeita”, e na qual se “evidencia[v]am as capacidades de liderança, de administração, de tática militar, de espírito associativo, de organização econômica, de constituição legislativa... do negro brasileiro”. (Gomes 2010, 101). (Itálico do autor).

5. Obshchinas. Saindo do continente Abya Yala,19 indo ao continente europeu, Europa Oriental e Ocidental, poderíamos resenhar dois exemplos prévios ao século XX, como foram as obshchinas, comunas, na Rússia tsarista, 20 e a emblemática, porém de curta duração, Comuna de Paris. Apesar das várias tentativas pré-capitalistas ocorridas não só no continente europeu como também em outras regiões da Terra cercada por oceanos, a experiência russa no século XIX com as comunas de trabalhadores rurais, obshchinas, tem sido uma das principais referências mencionadas quando se discute exercícios de organização coletiva na produção agrária. De imediato cabe diferenciar o significado de obshchina daquele de mir, uma vez que ambos os conceitos são confundidos. Mir significava uma comunidade de camponeses, ou a principal instituição dentro da comunidade, na qual se reuniam as pessoas mais velhas para desencadear o processo de tomada de decisão coletiva. “O mir tinha poderes judiciais, fiscais e policiais em seus territórios; constituía uma espécie de autogoverno nos municípios agrários” (Espín 2011, 65). Por sua vez, “a obshchina era uma porção de terra de propriedade coletiva, dividida periodicamente e trabalhada individualmente por cada família. A obshchina era dirigida administrativa e politicamente por um mir superior” (Espín 2011, 65).21 “Daí que o processo de tomada de decisão ocorria por meio de assembleias ou conselhos sob a característica da propriedade da terra ser comum, implementando-se, assim, o autogoverno”.22

As experiências das obshchinas em território russo no oitocentismo, como apontado anteriormente, foram objeto de vários aportes teóricos a ponto de serem consideradas como uma referência ao futuro de uma sociedade democrática, igualitária, contrária ao autoritarismo vigente naquela época, o tzarismo.23 E um desses aportes diz respeito ao debate epistolar entre a populista24 russa Vera Zasulitch e Karl Marx.

Em 1881, Vera Zasulitch [...], pediu a Karl que esclarecesse sua posição sobre a comuna aldeã russa. Depois da emancipação dos servos em 1861, perguntou ela, a comuna desapareceria inevitavelmente à medida que o capitalismo russo se desenvolve? Ou será que, antes de o desenvolvimento capitalista tornar-se inexorável, a comuna poderá vir a ser “o ponto de partida direto” ou “o elemento de regeneração na sociedade russa”? (...) Num dos rascunhos da carta para Vera Zasulitch em 1881 [de acordo com Musto (2018) foram três os rascunhos escritos por Marx para enviar a resposta], Karl declarou que “para salvar a comuna russa, uma revolução russa é necessária”, e ainda argumentou que “se a revolução vier no momento oportuno, se ela concentrar suas forças de maneira a dar carta branca à comuna rural, esta última logo se desenvolverá como elemento de regeneração na sociedade russa e elemento de superioridade em relação aos países escravizados pelo sistema capitalista”. (Jones 2017, 613-614)

Ou seja, Vera Zasulitch defendia a tese de que a Rússia, por meio da sua experiência com os mires e obshchinas, comunas agrícolas, portanto uma experiência de prática camponesa, não teria necessariamente que viver a industrialização, a experiência de prática de trabalho urbano, para alcançar o status de uma sociedade na qual os meios de produção e a produção seriam socializados. “Em seus escritos políticos, Marx sempre observou que, no cenário europeu, a Rússia representava um dos principais obstáculos à emancipação da classe trabalhadora” (Musto 2018, 59). Anterior à troca de cartas com Vera Zasulitch, Marx considerava que na Rússia “o atraso das condições sociais, a lentidão do desenvolvimento econômico [industrial] do país, o despótico regime tsarista e a política externa conservadora haviam contribuído para fazer daquele imenso império o posto avançado da contrarrevolução” (Musto 2018, 59). Porém, em “1881, coincidindo pelo seu crescente interesse pelas formas arcaicas [pré-capitalistas] de organização comunitária, que o havia levado a estudar os antropólogos contemporâneos” (Musto 2018, 60), estudos antropológicos esses que ultrapassavam a Europa, Marx recebe a carta de Vera Zasulitch com a qual reforça a sua nova maneira de pensar a questão levantada por Zasulitch e outros intelectuais populistas:

A questão da comuna camponesa levou Marx a uma importante clarificação de sua concepção da necessidade histórica. Não havia, sustentava ele em 1877, nenhuma abstratamente necessária ou inelutável progressão da propriedade comunal primitiva para a propriedade privada (capitalista), e desta para o socialismo, que fosse aplicável a todas as sociedades. (...) E deixou claro que não havia pretendido, em O capital, construir “uma teoria histórico-filosófica geral cuja suprema virtude estivesse em ser supra histórica”. (Bottomore 1983, 71)

Terminaremos esta resenha transcrevendo Marcelo Musto (2018), quando diz em O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos [1881-1883] que “Marx chegou à conclusão de que a alternativa vislumbrada pelos populistas russos era realizável e afirmou que:

falando em termos teóricos, a “comuna rural” russa pode, portanto, conservar-se, desenvolvendo sua base, a propriedade comum da terra, e eliminando o princípio da propriedade privada, igualmente implicado nela; ela pode tornar-se um ponto de partida direto do sistema econômico para o qual tende a sociedade moderna; ela pode trocar de pele sem precisar se suicidar; ela pode se apropriar dos frutos com que a produção capitalista enriqueceu a humanidade sem passar pelo regime capitalista. (Musto 2018, 78)

6. Comuna de Paris. Como o nosso último referente foi Karl Marx, vale aqui concluir nossas resenhas relatando um pouco da experiência da Comuna de Paris.25 Marx escreveu a seguinte frase a respeito dessa experiência: “A Paris dos trabalhadores, com sua Comuna, será eternamente celebrada como a gloriosa precursora de uma nova sociedade” (Marx 2011, 79).26 Apesar de ter sido curta a experiência, cerca de três meses, daquilo que também ficou conhecido como República Social ou República Democrática e Social,27 não cabe dúvida de que este é um exemplo de uma população citadina que de 18 de março a 29 de maio de 1871 foi cercada por uma força militar superior em número a sua capacidade e potencial de sobrevivência, mas que o seu curto período de existência deixou as gêneses da possibilidade de uma sociedade auto-organizada. Essa auto-organização procurou ser institucionalizada por meio de um conselho municipal, a Comuna de Paris, eleito pelos cidadãos da cidade. Conselho que desenvolvia as suas atividades desde o Hôtel de Ville (sede do Poder Executivo da cidade de Paris).28 A Comuna tinha como elemento de segurança interna e externa a Guarda Nacional, composta por todos aqueles cidadãos, communards, que podiam carregar uma arma, na medida em que, desde a sua implantação, foi extinto o exército permanente.

A comuna era formada por conselheiros municipais, escolhidos por sufrágio universal nos diversos distritos da cidade, responsáveis e com mandatos revogáveis a qualquer momento. [...] A Comuna devia ser não um corpo parlamentar, mas um órgão de trabalho, Executivo e Legislativo ao mesmo tempo. [...] Dos membros da Comuna até os postos inferiores, o serviço público tinha de ser remunerado com salários de operários (itálicos do autor). [...] Tal como os demais servidores públicos, os magistrados e juízes deviam ser eletivos, responsáveis e demissíveis. (Marx 2011, 56-57)

Com o fechamento de fábricas e outros empreendimentos privados pela fuga de seus proprietários, o Conselho da Comuna decidiu entregar “às organizações operárias, sob reserva de domínio, de todas as oficinas e fábricas fechadas, não importando se os respectivos capitalistas fugiram ou preferiram interromper o trabalho” (Marx 2011, 64). O processo organizacional e gerencial dessas propriedades que passaram a ser controladas pelos trabalhadores ocorreu por meio da criação de cooperativas, o que exemplificaria a possibilidade da autogestão29 como método gerencial coletivo. O salário de professores e professoras foram aumentados e igualados. Creches foram construídas próximas às grandes indústrias. As manifestações artísticas passaram a ser democratizadas. A descentralização como consigna, processos de controle social30 foram implementados, isto é, a participação cidadã se fez presente na medida em que

[a] ideia era de que os servidores públicos ouviriam os cidadãos, que por sua vez estariam ativamente envolvidos em seu governo; um cartaz no segundo arrondissement [distrito] pedia “a permanente intervenção dos cidadãos nos assuntos comuns por meio da livre defesa de seus interesses”. Os administradores da Comuna eram considerados responsáveis pelas pessoas comuns, assim como seus representantes e delegados. (Merriman 2015, 108)

Contudo, não imaginemos que a Comuna de Paris surgiu e funcionou sob um contexto favorável para que sua existência fosse gloriosa e precursora de uma nova sociedade – claro que ali foram exercitados conteúdos debatidos até os dias de hoje, como o republicanismo, a igualdade de gênero,31 entre outros meios para a promoção da justiça social.32 A Comuna surge contextualizada pela derrota da França (Napoleão III) em 1870 perante o Exército prussiano (Guilherme I) liderado pelo “Chanceler de Ferro” Otto von Bismarck. 33 Também deve ser considerado que a sua gestão não foi isenta de conflitos, gerados não só pela novidade, uma vez que o Poder Executivo e o Legislativo não eram mais centralizados como no Império, os enfrentamentos eram ocasionados pelas diferentes interpretações do significado de Comuna, Revolução Social e mesmo de superposição de autoridades na direção da Comuna.

Desde o início, a Comuna sofreu com autoridades conflitantes e duas visões opostas da Comuna. De um lado, os proudhonistas, quer eram anarquistas e, portanto, opunham-se à própria existência do Estado, viam a Comuna essencialmente como uma democracia popular e uma autonomia municipal. Os jacobinos, por sua vez, eram a favor de uma estrutura mais autoritária e realista que parecia cada vez mais necessária, considerando a situação militar desafiadora. (Merriman 2015, 78)

Como anteriormente apontado, a Comuna de Paris surge em um ambiente hostil com a perda pela França da guerra com a então Prússia. Os revoltosos parisienses indignados, não só com a derrota mas também com o governo que se manteve de Adolphe Thiers, sofreram com as agruras do insucesso militar e com o cerco do exército liderado por Thiers, que desde Versalhes comandou o extermínio da Comuna, executando de forma indiscriminada milhares de parisienses, sem considerar a Convenção de Genebra de 1864,34 e alcançando não apenas os communards, mas mulheres, idosos, crianças e/ ou simpatizantes, como foi o caso de estrangeiros que viviam em Paris ou que vieram apoiar diretamente a revolução, a criação de corte marcial, a destruição de prédios que estavam ao alcance da artilharia do exército vindo de Versalhes.35 Ainda como referência, John Merriman (2015, 311), citando o poeta Victor Hugo a respeito da Comuna de Paris: “O cadáver está na terra, mas a ideia está de pé”.36




Considerações finais


Este breve relato de seis situações anteriores ao século XX e com características pré-capitalistas não significa que elas sejam exemplos a serem praticados ou seguidos na contemporaneidade. São exemplos referências do que ocorreu em dadas situações históricas que, na nossa intepretação, aproximam- se daquilo que conceituamos como gestão social. O intuito foi apenas resumir conhecimentos relativos ao passado da humanidade a partir de um ponto de vista escolhido, o pré-capitalismo, que na visão romântica do mundo tem um passado que se encontra ornado de uma série de virtudes, como a predominância de valores qualitativos (valores de uso), fundamentados na comunidade orgânica entre os indivíduos, ou, ainda, no papel essencial das ligações afetivas e dos sentimentos, em contraposição à civilização capitalista, ainda dominante no presente século, cujo prevalência é a quantidade (valores de troca), fundamentados no preço, no dinheiro, na mercadoria e no cálculo racional objetivando apenas o lucro.

Como o aqui resenhado não ultrapassou o século XX, pode surgir uma pergunta: qual ou quais das experiências ocorridas no século XX e no entrante XXI podem ser relatadas e que se avizinham das características pré-capitalistas? De imediato poderíamos apontar duas respostas: a primeira dizendo que aquelas experiências revolucionárias que propuseram substituir a ordem social institucionalizada na qual vivemos, o capitalismo, não lograram alcançar as suas propostas ou, simplesmente, desenvolveram composições socioeconômicas longe de atender a emancipação do homem. Na realidade, desde meados do século XIX vivemos uma institucionalidade em que tudo é transformado em mercadoria.37 A segunda resposta está relacionada à dimensão estabelecida pelos periódicos acadêmicos de não ultrapassarmos “x” número de palavras; portanto, não teríamos aqui espaço suficiente para tal tarefa, e torna-se necessário a divulgação de resenhas que deem conta de práticas ocorridas nesta última e presente centúria que justifiquem não mais a ancestralidade do conceito de gestão social, mas de práticas contemporâneas que justifiquem a existência de tal conceito.

Como dito inicialmente, este texto não teve pretensão historiográfica, não só pela delimitação de espaço, pois se trata de um artigo, mas também porque relatamos apenas algumas experiências que ao longo de séculos anteriores ao século XX —conhecidas como experiências pré-capitalistas, apesar de suas nuances— fizeram intentos de sociedades mais justas e igualitárias por meio de processos de gestão coletiva. Os casos descritos, embora tenham sido temporários dadas as circunstâncias de cada contexto histórico-institucional em que foram praticados, são uma referência. Embora tenham surgido para não serem interinos, desejando ser permanentes, as inter-relações que os acompanharam ou os submeteram fizeram com que suas pretensões fossem substituídas por outras que diferiam de suas aspirações, uma vez que “[n] ão há nenhuma origem fora da vida do efêmero” (Adorno 2009, 135), do temporário. Desse modo, os conceitos, desde os seus engendramentos, guardam identidade apenas durante a sua possibilidade temporal de existência, e contradições vão surgindo ao longo da sua existência, desfigurando-os de sua identidade original, uma vez que a história é movimento.

Finalmente, as experiências descritas podem justificar, coetaneamente, referências gestoras que ocorreram ou que poderão ocorrer sob um continuum de possibilidades, entre a acracia e a burocracia. Isto é, de um extremo a outro do continuum, uma miríade de possibilidades gerenciais, como autogestão, cogestão, cooperativismo e outros tipos de arranjos institucionais participativos, que evitem, o máximo, se aproximar do outro extremo do continuum, a burocracia.38




Notas


1 Apesar de estar como nota de rodapé, vale reforçar o significado do pré-capitalismo por meio de Garcia Linera (2015, 236), quando afirma que as sociedades pré-capitalistas eram as “sociedades onde a propriedade privada das condições fundamentais da produção não existia e onde se desenvolvem relações de coexistência econômica, política, administrativa e comunitária”. Por sua vez, “os textos atuais de antropologia observam em geral que, nas sociedades igualitárias, os direitos aos recursos eram comuns; a propriedade limitava-se a objetos estritamente pessoais; o status porventura existente não era herdado, mas correspondia diretamente à sabedoria, à capacidade e à generosidade comprovadas; os dirigentes eram apenas ‘primeiros entre iguais’ num processo de tomada de decisões essencialmente coletivo” (Bottomore 1983, 74).

2 Estudo mais completo sobre a organização socioeconômica das comunidades cristãs primitivas, poderá ser encontrado em: Craig Blomberg, Las posesiones materiales em el cristianismo primitivo.

3 Igreja, “[a] comunidade dos que acreditam em Cristo [...]a casa ou a comunidade do Senhor” (Küng 2012, 90).

4 “[Ayllu] em Aymara também era chamado de hata, que significa semente, e geralmente tem o significado de linhagem, de consanguinidade. O ayllu ancestral, como forma social de posse da terra, de organização da produção, de circulação de produtos, de ocorrência de técnicas de trabalho, era inicialmente uma unidade específica de parentesco definida por uma linhagem de um fundador comum as vezes mítico, que eram venerados em um lugar sagrado, huaca, sede das divindades que cultuam em torno do qual os mortos são enterrados para garantir, com a proteção divina, a continuidade das gerações” (Linera 2015, 273. Tradução livre). Acrescentando que os membros dos ayllus tinham acesso direto aos recursos comunitários e a usar o trabalho dos outros membros da comunidade na produção agrícola, por meio do barbecho, da semeadura e da colheita sem receber nenhum pagamento em troca. Se a tarefa era grande e envolvia várias famílias, elas se revezavam até o trabalho terminar (Linera 2015, 382). Salientamos que estes tipos de atividades coletivamente organizadas, antecederam a colonização espanhola.

5 José Carlos Mariátegui, o fundador do marxismo latino-americano, usa o termo comunismo inca, para descrever as comunidades indígenas (ayllus) na base da sociedade inca anterior à colonização hispânica. Para ele, estas tradições comunitárias indígenas [andinas] se mantêm até o século XX (Löwy 2020).

6 Para um bom entendimento da organização comunitária da produção, isto é, de uma gestão coletivamente compartilhada, merece atenção o livro supracitado de Álvaro Garcia Linera Forma valor y forma comunidad (2015), no qual o autor descreve com precisão histórica e conceitual o fenômeno das formas socioeconômicas não capitalistas.

7 “Desde que o nome Guarani foi registrado pela primeira vez, em 1528 (...), as notícias históricas, as pesquisas etnográficas e as análises relativas aos Guaranis continuam inquietando muito pesquisadores. A bibliografia relativa a esse povo é simplesmente ampla —talvez seja o povo indígena das Américas com maior acervo bibliográfico” (Brighenti 2010, 13).

8 Embora nas referências bibliográficas de José Roberto de Oliveira não seja mencionada a publicação de Rafael Carbonell de Masy, acreditamos que De Masy divulgou as suas ideias em: Rafael Carbonell de Masy, Estrategias de desarrollo rural en los pueblos guaraníes (Barcelona: Antoni Bosch, 1992), 119-120.

9 Durante 60 anos, de 1580 a 1640, ambos países conformaram a União Ibérica, liderada pela Coroa espanhola.

10 “Na opinião de João Pacheco de Oliveira (...), fixar os indígenas em pueblos permanentes era uma forma de territorializá-los. Para este autor, a territorialização pode ser definida como um processo de reorganização social que traz consigo algumas implicações, tais como: a ‘criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora’; a ‘constituição de mecanismos políticos especializados’; a ‘redefinição do controle social sobre os recursos ambientais’ e a ‘reelaboração da cultura e da relação com o passado’. Para o autor, o ‘processo de territorialização é, justamente, o movimento pelo qual um objeto político-administrativo’ seria chamado na América espanhola de ‘redução’ ” (Silva 2011, 76). A referência de Silva apud Oliveira encontra-se em Oliveira Uma etnologia dos “Índios Misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais.

11 Uma das apreciações críticas que podemos citar é descrita no artigo “República Guarani no espelho”, escrito em 2019 pela profa. Rossana Britto da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Embora o artigo tenha como objeto de análise o documentário de Sylvio Back intitulado República Guarani, de 1981, a análise de Rossana Brito é digna de apreço.

12 A referência utilizada por Francisco José da Silveira Lobo Neto é Clovis Lugon, A República “Comunista” Cristã dos Guaranis: 1610-1768, 3.ª ed. (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977). A referência que utilizamos do mesmo Clóvis Lugon é A República Guarani (São Paulo: Expressão Popular, 2010).

13 “As sociedades escravistas conheceram diversas formas de resistência, destacando-se as fugas individuais e as comunidades de fugitivos. [Comunidades] que receberam diferentes nomes, como cumbes na Venezuela e palenques na Colômbia. Na Jamaica, no restante do Caribe inglês e no Sul dos EUA, foram chamados de marrons. Na Guiana Holandesa e depois Suriname, ficaram conhecidos como bush negroes. Em Santo Domingo (Haiti) e outras partes do Caribe francês, o termo era marronage; já em Cuba e Porto Rico, cimarronaje. No Brasil, receberam inicialmente o nome de ‘mocambos’, para depois serem denominados ‘quilombos’ ” (Schwarcz e Gomes 2018, 367).

14 Segundo Edison Carneiro (2011), o Quilombo dos Palmares era composto de diversos mocambos, “pequenos ajuntamentos de casas primitivas, cobertas de folhas de palmeiras [e] protegidos por duas ordens de paliçadas” (Carneiro 2011, 30). São os seguintes os nomes dos mocambos então existentes: Zumbi, Acotirene, Tabocas (dois com o mesmo nome), Dambrabanga, Subupira, Macaco, Osenga, Amaro, Andalaquituche, Aqualtune. Ainda de acordo com Carneiro, outros mocambos surgiram durante a guerra de resistência: Gongoro, Cucaú, Pedro Capacaça, Guiloange, Una, Catingas e Engana-Colomim (a ordem dos nomes dos mocambos aqui identificados é a que aparece em Carneiro 2011, 30-31).

15 JEm 1678 foi levado a Ganga Zumba um tratado de paz pelas autoridades de Pernambuco que “não prosperou, e Ganga Zumba com parte dos palmaristas se mudaram para o mocambo Cucaú. No entanto, houve uma divisão entre as principais lideranças, já que muitos se negavam a ir viver no Cucaú. Ganga Zumba acabaria assassinado, e o novo líder, Zumbi, recusou o acordo de paz das autoridades coloniais de Pernambuco” (Schwarcz e Gomes 2018, 370).

16 “[A]ssim como os reinos de sobados na África Central, possuía um rei, venerado e reconhecido por todos como senhor; tinha ‘ministros de Justiça, assim como de guerra’ ” (Gomes 2010, 107).

17 “Os chefes palmarinos, em todas as ocasiões importantes, reuniam-se em conselho —um costume em vigor entre as aldeias bantos— e, segundo o testemunho dos holandeses, tinham uma ‘grande’ casa para as suas reuniões. O presidente do Conselho era o Gana-Zona, irmão do rei e chefe do mocambo de Subupira, a ‘segunda cidade’ do quilombo” (Carneiro 2011, XLV).

18 Texto que faz parte do livro organizado por Flávio Gomes, Mocambos de Palmares: histórias e fontes (2010).

19 A expressão Abya Yala é uma tentativa de institucionalizar o nome de um continente que é comumente denominado de América Latina, assim como América Luso-Hispânica, Hispano-América e Ibero-América pelos colonizadores iberos. Segundo Josef Estermann, a expressão América Latina é duplamente eurocêntrica e colonial na medida em que dá a impressão de que a identidade do continente é latino-romana em função de o castelhano e o português serem de origem românica, e América graças ao navegante Américo Vespúcio. Por sua vez Abya Yala tem origem no povo Kuna, que habita o Panamá. Abya Yala significa terra em plena madureza, ou terra fértil. “Desde 1992, quinto centenário da Conquista, os indígenas preferem usar [a expressão Abya Yala], que foi sugerido pelo aimará boliviano, Takir Mamani (Constantino Lima) já em 1977, depois de sua visita aos Kunas no Panamá” (Estermann 2015, 16). Devemos acrescentar o que nos diz Enrique Dussel quanto ao fato de que a massa continental denominada América Latina possuía diferentes nomes, antes da chegada dos colonizadores ibéricos, “segundo os povos que a habitavam: o Cemanáhuac dos astecas, o Abya Yala dos kunas do Panamá, o Tahuantisuyo dos incas... diversos nomes autóctones para um continente já humanizado em sua totalidade quando Colombo chegou” (Dussel 1993, 99).

20 Aqui, à semelhança das resenhas dos ayllus, faremos um relato partindo de um conceito (obshchinas) que generaliza a prática pré-capitalista naquele país da Europa Oriental, Rússia, sem especificar no seu território a área de exemplificação.

21 “Antiga comunidade de camponeses russos na qual a terra era de propriedade inalienável da obshchina, ou comuna, e periodicamente redistribuída em lotes às famílias pertencentes à comuna, em geral de acordo com o número de adultos do sexo masculino existentes em cada família” (Bottomore 1983, 71).

22 propósito das obshchinas, Friedrich Engels faz o seguinte comentário: “o poder supremo pertence ao conselho de família, à assembleia de todos os adultos da comunidade, decide sobre as compras e vendas mais importantes, sobretudo as de terras etc. (...) Não faz mais de dez anos que se comprovou, na Rússia, a existência de grandes comunidades familiares desse gênero; e hoje todo o mundo reconhece que elas têm, nos costumes populares russos, raízes tão profundas quanto a obshchina ou comunidade rural” (Engels 1979, 63).

23 “A ideia de que a comuna russa poderia ser a instituição embrionária de uma sociedade igualitária descentralizada foi primeiro difundida por Alexander Herzen e, subsequentemente, por todos os teóricos do populismo revolucionário na Rússia, que viam como o veículo pelo qual a devastação econômica e moral trazida pelo capitalismo poderia ser evitada, e realizado o destino excepcional da Rússia de mostrar ao mundo a maneira pela qual o socialismo poderia ser realizado” (Bottomore 1983, 71).

24 “Os populistas (naroddniki) afirmam que a tradicional comuna rural (obschina) permitirá chegar ao socialismo sem passar pelo capitalismo. Para os teóricos populistas, o capitalismo é um fenômeno alheio ou estranho na Rússia ou um desvio do curso normal de sua economia e contra ele pode e deve-se lutar para poupar os camponeses russos dos horrores da espoliação, manifestados no processo de transição ao capitalismo no Ocidente” (Vásquez 2011, 180). “A comuna, acreditavam eles [populistas], havia preservado a solidariedade natural e os instintos socialistas dos camponeses russos. A federação das comunas livres substituiria o Estado autoritário e lançaria as bases da fusão das instituições russas ancestrais com o pensamento socialista ocidental contemporâneo” (Bottomore 1983, 71).

25 O precedente histórico da expressão comuna foi “a ‘Comuna revolucionária’ que tomara o poder em agosto de 1792, quando a França havia sido sitiada por Estados estrangeiros. Agora, a exigências de soberania popular e de um governo parisiense autônomo emergiam como parte da definição do que a ‘Comuna’ desejada deveria ser, mesmo enquanto tropas prussianas ameaçavam a capital. (...) Na tradição da Revolução Francesa [1789], e mais recentemente do movimento de reuniões públicas iniciado em 1868, os republicanos acreditavam que a organização popular por si só permitiria a defesa de Paris contra as tropas inimigas que cercavam a cidade” (Merriman 2015, 43). Ainda utilizando Merriman como referência (Merriman 2015, 73): “O termo ‘comuna’ tinha vários significados nessa época, O Manifesto do Comitê dos Vinte Arrondissements [distritos de Paris], divulgado vários dias depois dos acontecimentos de 18 de março, apresentava sua definição de ‘Comuna [...] [como sendo] a base de todos os estados políticos, assim como a família é o embrião das sociedades. [A Comuna] deve ser autônoma [...] [com] sua completa soberania, assim como o indivíduo no meio da cidade’. Com o objetivo de desenvolvimento econômico e garantia de segurança, Paris deveria ‘federar-se com todas as outras comunas ou associações de comunas para formar a nação. [...] É essa a ideia [...] que acabou de triunfar em 18 de março de 1871’ ”.
É bom relembrar que a expressão comuna entre meados dos anos 1960 e 1980, pelo menos no Brasil, tinha um significado diferente daquele aqui desenhado. Chamar o outro de comuna naquele período tinha conotação política, era ser uma pessoa de esquerda, denominação que para o bem ou para o mal, em geral para o mal, poderia complicar a vida do indivíduo. Por exemplo, caracterizar alguém de comuna seria identificá-lo com absurdos, com estupidezes, vale a acentuação, que raiavam a ignorância a ponto de relacionar os comunistas a ações antropofágicas. Porém, contemporaneamente, não garantimos que tal expressão tenha deixado de ser usada de forma pejorativa como então.

26 No entanto, essa tentativa que prenunciaria uma nova sociedade foram, para “Marx (...) ‘medidas tomadas pela Comuna, notáveis pela sua sagacidade e moderação, só podiam ser compatíveis com a situação de cidade sitiada’ (...). Como reiterou mais tarde, (...), a Comuna de Paris foi apenas ‘o levante de uma cidade, em condições excepcionais, e sua maioria não era, nem poderia ser socialista’. Não obstante, se a comuna não foi uma revolução socialista, ainda assim Marx ressaltou que sua ‘grande medida social (...) foi sua própria existência’. [Porém, longe] de ser vista como um modelo dogmático, ou como uma fórmula para governos revolucionários do futuro” (Bottomore 1983, 70).

27 No livro A guerra civil na França escrito por Karl Marx (2011), há um apêndice com um escrito de Friedrich Engels com o título Introdução à guerra civil na França, de Karl Marx (1891), no qual Engels faz o seguinte comentário a respeito do significado de República Social: “O que se deveria entender por essa República Social era algo que ninguém sabia ao certo, nem mesmo os trabalhadores” (Marx 2011, 189).

28 “Em 28 de março [1871], a vitoriosa nova autoridade da capital francesa proclamou oficialmente a Comuna de Paris no Hôtel de Ville [Prefeitura Municipal de Paris]” (Merriman 2015, 76).

29 “Autogestão. Equivalente ao alemão Selbstverwaltung e ao inglês self-management, trata-se de uma forma de autodeterminação dos seres humanos como seres autônomos e conscientes, dependentes de condições sociais concretas. Entre tais condições incluem-se uma dada estrutura de produção, a divisão social e tecnológica do trabalho, instituições políticas, o nível de cultura e as tradições e hábitos de comportamento humano predominantes. A autogestão deveria ser considerada, do ponto de vista filosófico, como um processo que vise superar a alienação das capacidades humanas no contexto das relações sociais” (Outhwaite e Bottomore 1996, 33-34).

30 “Em uma democracia, o controle social é figura central: os cidadãos, a sociedade, os grupos organizados controlam o poder político, têm eles próprios poder. Todo agrupamento humano possui meios e recursos mais ou menos ‘espontâneos’ para agir de modo organizado e contrastar as diferentes formas de poder. Tem como determinar as orientações do poder político, apoiá-lo ou modificá-lo. O poder social é uma realidade viva e dinâmica. Nem sempre consegue prevalecer, mas funciona o tempo todo como ‘ameaça potencial’. Quanto mais organizada, ciente de seus interesses e consciente de suas reais possibilidades for uma comunidade, mais ela terá aumentada sua potência como agente de controle do poder” (Di Giovanni e Nogueira 2015, 197).

31 “Embora a estrutura da economia permanecesse relativamente inalterada, a posição das mulheres melhorou rapidamente. De fato, a solidariedade e a militância das mulheres parisienses, que haviam sofrido muitas dificuldades durante o cerco prussiano, destacam-se com um dos aspectos mais notáveis da Comuna de Paris” (Merriman 2015, 105).

32“[A] ‘questão social’ —a condição dos pobres e as reformas que poderiam ser realizadas para ajudá-los— permanecia importante para muitos parisienses comuns. A ideia de que a revolução poderia produzir reformas que reduziriam ou mesmo eliminariam as consideráveis diferenças nas condições de vida, nas oportunidades e nas expectativas permanecia entrincheirada na memória coletiva dos trabalhadores parisienses” (Merriman 2015, 103).

33 “A derrota da França na Guerra Franco-Prussiana levara ao fim o regime de Napoleão III, e o longo cerco de Paris que se seguiu à rendição de Napoleão só fez enfurecer os parisienses que há muito criticavam o imperador. (...) os republicanos parisienses —apoiados por unidades da Guarda Nacional potencialmente revolucionárias— estavam preparados para governar eles próprios a cidade” (Merriman 2015, 55).

34 Convenção de Genebra é o nome que se dá a vários tratados internacionais assinados entre 1864 e 1949 para reduzir os efeitos das guerras sobre a população civil, além de oferecer uma proteção para militares capturados ou feridos.p>

35“Comandantes franceses, humilhados com a derrota nas mãos da Prússia e de seus aliados apenas sete meses antes, pareciam estar vingando-se em parisienses comuns” (Merriman 2015, 187).

36 O eco da Comuna na intelectualidade portuguesa oitocentista faz sentir por meio do escritor português Jaime Batalha Reis (1847-1935), em carta a sua namorada faz o seguinte comentário sobre a Comuna de Paris: “A Comuna, minha Celeste, representa a miséria dos operários sem trabalho, dos operários que não chegavam a ganhar para as suas famílias, para o pão das suas famílias, enquanto os donos das fábricas juntam em poucos anos milhões, dos pobres, dos desgraçados, que eram já filhos de filhos de filhos de operários miseráveis. Ora, é razoável, é digno defender das calúnias com que os atacam esses desgraçados, que nunca tiveram uma recompensa para o seu trabalho. Aqui tens por que sou pela Comuna” (Mónica 2001, 121).

37 Uma excelente compreensão dessa ordem social institucionalizada, o capitalismo, poderá ser encontrada no livro editado pela editora Boitempo, Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica (2020), de Nancy Fraser e Rahel Jaeggi.

38 Neste início de século XXI dois são os livros que acreditamos ser direcionados a descrever, historicamente, o desenrolar de modos de produção assim como proposições de superação do atual modo de produção dominante, o capitalismo: Pierre Dardot e Christian Laval, Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI (São Paulo: Boitempo, 2017); Thomas Piketty, Capital e ideologia (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020). Além do mais, em ambos os textos é possível conhecer propostas gerenciais que se aproximam daquilo que desde o início dos anos 1990 apregoamos ou discutimos, a gestão social.


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